Cotas Sociais nos órgãos públicos estaduais de ensino superior.

Publicado 23/08/2004

Lei 14.832.

 

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Art. 1º. Esta Lei institui o sistema de reserva de vagas, em estabelecimentos públicos estaduais de ensino superior no Estado de Goiás, mediante Concurso Vestibular. Parágrafo Único – Como estabelecimento público estadual de ensino superior inclui-se a Universidade Estadual de Goiás – UEG, ou outro da mesma espécie que vier a ser instituído pelo Estado.

 

Art. 2º. Poderão se inscrever para os benefícios desta Lei os seguintes estudantes carentes:

I – oriundos da rede pública de ensino;

II – negros e índios;

III – portadores de deficiência, nos termos da legislação em vigor.

§1º. Aplicar-se-á para definição dos estudantes carentes os mesmo critérios para concessão de bolsas universitárias instituídas pelo Governo do Estado de Goiás.

§ 2º. Por aluno oriundo da rede pública de ensino entendese como sendo aquele que tenha cursado integralmente todas as séries do ensino médio, em escolas públicas das unidades da federação.

§ 3º. Por negros entende-se os classificados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, na categoria em questão, identificando os seguintes elementos:

I – ancestralidade, matriz cultural, identidade etno-racial e o sentimento de pertencimento a um grupo que historicamente partilha a mesma experiência de discriminação.

§ 4º. Por índios, entende-se os brasileiros de ascendência pré-colombiana, de acordo com a Lei Federal nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio).

§ 5º. O candidato no ato da inscrição deverá optar por qual reserva de vagas estabelecidas nos incisos I, II e III do presente artigo irá concorrer.

 

Art. 3º Cabe às universidades públicas estaduais definir e fazer constar dos editais dos processos seletivos a forma como se dará o preenchimento das vagas reservadas por força desta Lei, inclusive quanto ao quantitativo oferecido e aos critérios mínimos para a qualificação do estudante, observado o disposto no seu art. 5º e, ainda, os seguintes princípios e regras:

I- autonomia universitária;

II- universalidade do sistema de cotas quanto a todos os cursos e turnos oferecidos;

III- unidade do processo seletivo; e

IV- em caso de vagas reservadas não preenchidas por determinado grupo deverão as mesmas ser, prioritariamente, ocupadas por candidatos classificados dos demais grupos da reserva seguindo a ordem de classificação.

Parágrafo único – Os critérios mínimos de qualificação para acesso às vagas oferecidas deverão ser uniformes para todos os concorrentes, independentemente de sua origem.

 

Art. 4º. Atendidos os princípios e regras instituídos nos incisos I a IV do art. 3º e seu parágrafo único, nos primeiros 05 (cinco) anos de vigência desta Lei a cota mínima de vagas reservadas aos estudantes carentes nos estabelecimentos públicos estaduais de ensino superior fica estipulada no percentual mínimo de 25% (vinte e cinco por cento) do total das vagas existentes em cada período do ano letivo que será distribuído da seguinte forma:

I – 10% (dez por cento) para estudantes oriundos da rede pública de ensino;

II- 10 % (dez por cento) para negros e índios; e

III- 5 % (cinco por cento) para pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor.

§ 1º. Após o prazo estabelecido no “caput” do presente artigo qualquer mudança no percentual acima deverá ser submetida à apreciação do Poder Legislativo.

§ 2º .Será beneficiado pelo sistema de cotas o candidato que tenha preenchido os requisitos legais para a admissão nos estabelecimentos públicos estaduais de ensino superior.

 

Art. 5º. Para efeito de comprovação da condição de beneficiário desta Lei, será observada da seguinte forma:

I- a categoria racial constante do Registro Civil, quando possível;

II- sistema de auto-declaração, quando não for possível a identificação pela previsão do inciso I deste artigo;

III- outros sistemas a serem criados pela universidade, devidamente aprovado pelo Conselho de que trata o art. 7º desta Lei.

Parágrafo único- Caberá à Universidade instituir mecanismos de combate às possíveis incidências de fraude a esta Lei.

 

Art. 6º. Para fins de aplicação da ação afirmativa instituída nesta Lei, os órgãos de direção pedagógica superior das universidades, adotarão critérios definidores de verificação de suficiência mínima de conhecimentos, bem como uma média mínima para aprovação, os quais deverão ser publicados no edital de vestibular ou exames similares, sob pena de nulidade.

 

Art. 7º. Na regulamentação desta Lei o Poder Público Estadual deverá criar um Conselho Fiscalizador que será composto por Órgãos Públicos, Organizações Não – Governamentais e Entidades da Sociedade Civil, todos com renomado trabalho de contribuição para a inclusão social no Estado de Goiás.

Parágrafo Único – O conselho servirá para traçar diretrizes de fiscalização e controle no preenchimento das vagas e criar alternativas de divulgação do benefício para futuros candidatos, dentre outras atribuições que deverão ser definidas em regulamento próprio.

 

Art. 8º. Os estabelecimentos de ensino de que trata esta Lei, publicarão, semestralmente, quadro demonstrativo do resultado contemplado pela reserva vagas instituídas por esta Lei.

 

Art. 9º. A reserva de vagas de que trata esta Lei terá um prazo de duração de 10 (dez) anos, podendo ser prorrogada uma única vez, mediante Lei específica.

Parágrafo único – A prorrogação de que trata o Caput deste artigo dependerá de uma avaliação histórica da execução da presente Lei.

 

Art. 10. O Governo do Estado, através de seu órgão competente, constituirá Comissão que regulamentará esta Lei no prazo de 180 dias.

 

JUSTIFICATIVA

 

O presente Projeto de Lei foi elaborado em conformidade com a deliberação das seguintes entidades do movimento negro: – Irmandade 13 de Maio / Congada; – Agentes Pastorais Negros – APNS; – Casa da Cultura da Comunidade Negra – Cacune; – Fórum de Entidades Negras de Goiás – Fenego; – Negros e Negras pela habitação; – Centro de Referência Negra Leila Gonzaga; – Grupo de Mulheres Negras – Malunga. Para iniciarmos a discussão a cerca da importância dessa propositura, deve ser demonstrada uma equação a ser enfrentada em nosso país: 513 anos de nação, 400 vividos sob o regime do escravismo e apenas 115 anos de liberdade – ao menos formal – para mais da metade da população. Somado o período do escravismo àquele que se seguiu pós-abolição, marcado pela mais absoluta omissão estatal em face das desigualdades e da discriminação racial, contabiliza-se uma trajetória de exclusão social e econômica dos descendentes de africanos. Daí, fazendo surgir vários Movimentos Negros em prol da luta de seu povo. A implantação da política de cotas vem ao encontro das reivindicações históricas do Movimento Negro brasileiro, que há muito tem afirmado que o Brasil somente encontrará o caminho da democracia na medida em que o racismo e outras formas de iniquidade social sejam abolidos do nosso cotidiano. Durante as décadas de setenta, oitenta e noventa, o Movimento Negro denunciou a prática corrente do racismo na sociedade; era uma voz isolada. Os governantes conservadores afirmavam que o referido Movimento era um perigo para a segurança nacional e com essa justificativa empreendiam uma feroz perseguição aos militantes negros. A luta anti-racista e os novos tempos que se descortinaram, possibilitaram que o tema do racismo fosse reconhecido por parcelas consideráveis da sociedade nacional. Setores do governo, hoje, já declaram publicamente, inclusive em textos escritos, que a população negra é discriminada e seu acesso às riquezas produzidas são dificultadas pelos diferentes mecanismos engendrados pelo preconceito racial. Os institutos de estatísticas oficiais divulgam abertamente as pesquisas que comprovam que o racismo é um fenômeno estrutural e afeta as diferentes possibilidades de inclusão dos negros e negras na sociedade. No sentido de justificar o presente projeto faz se necessário uma contextualização acerca do significado do sistema de cotas na sociedade, também chamado de “Ações Afirmativas” ou ainda de “Discriminação Positiva”. A idéia de ação afirmativa parte do entendimento de que os fenômenos sociais não são uma criação da natureza, mas o resultado do convívio em sociedade. Sendo assim, as desigualdades sociais não podem ser percebidas como resultado de arranjos naturais, e fruto da natural incapacidade de uns de serem competentes e fortes o suficiente para sobreviverem entre os melhores. É o resultado da percepção de que a teoria de seleção natural das espécies de Charles Darwin não tem valor no mundo social; e aquilo que cabe ao homem biológico, está longe de ser determinante em suas qualidades sociais. As desigualdades sócio-econômicas podem ser consideradas reflexos da herança social. Não se pode presumir que alguém vença uma corrida de cem metros livres usando um peso nos pés. O valor do peso aumenta de acordo com aquilo que se tem enquanto herança social. Alguém que é filho de pais com alguma instrução, com acesso à informação e a educação de razoável qualidade, possui mais chances de chegar à universidade ou conquistar bom emprego, àquele que tem que lutar contra a ausência de todos esses elementos. A discussão de raça está, portanto estruturada na discussão de classe, mas nem por isso adquire caráter menos importante. Ainda que em nosso país o processo de criação do Estado – nação esteja vinculada a questão racial, ou seja, à inclusão dos exescravos e seus descendentes na sociedade. Questão esta que foi resolvida na base da coerção e da incorporação da condição de subalternidade de funções na sociedade aos afro-descendentes – pretos ou pardos. Sabemos que não se resolve o problema da exclusão racial com a simples garantia de acesso à universidade, mais que isso, é necessária a implementação de políticas públicas e privadas que adotem e executem medidas que visem à instauração de correções de desigualdades raciais. A concessão de cotas é uma medida de caráter emergencial e provisório na correção de desigualdades, uma vez alcançada, passa-se para o segundo passo, qual seja, a mantença dos alunos na universidade. O afro-descendente, se não tem acesso ao ensino superior, não o tem porque em geral é pobre e esta condição sócioeconômica foi historicamente construída pela sua herança étnica e de escravidão. Sendo pobre, continuará freqüentando escolas públicas que segundo as políticas educacionais adotadas pelo governo não lhe darão condições para uma posterior formação universitária. E realmente não são escolas públicas pensadas para dar condição ao negro de alcançar alguma mobilidade social significativa. A principal justificativa para a propositura deste projeto de lei é a necessidade de se desfazer um erro que já vem se perpetuando por séculos. Dar a oportunidade de o negro pobre se projetar competitivamente nos diversos setores sociais através do sistema de cotas nas instituições de ensino. É muito mais que uma questão polêmica. De fato seria até bem-vinda, se fosse para promover discussões que gerassem resultados que enterrassem definitivamente essa diferença gritante existente entre as raças. O intuito é contribuir para consertar os erros históricos na base estrutural da sociedade brasileira que provocaram este déficit. Esta lei visa auxiliar na reconstrução deste novo paradigma. Servirá como uma norma reguladora automática dessa problemática, já que futuramente se estabelecerá um equilíbrio no “gradiente de concentração”, e finalmente esqueceremos, até de uma forma natural, que há esta diferença a qual fazemos questão de acreditar que não existe. Importante salientar que este projeto se enquadra dentro das políticas afirmativas que buscam o combate à discriminação histórica. Projetos semelhantes, que visam garantir cotas para negros nas universidades ou nos concursos para o serviço público, foram aprovados nos estados do Rio de Janeiro, Bahia e nas Câmaras Municipais de Salvador, Goiânia e Recife. O Brasil só não possui um apartheid formal, porque o negro nunca disputou de fato o espaço com o branco no mercado de trabalho, nos postos de comando. Uma pesquisa feita pela Fundação Dom Cabral, de Minas Gerais, mostra que 92% (noventa e dois por cento) dos presidentes das 50 (cinqüenta) maiores empresas brasileiras são brancos. Há uma presença diminuta de negros nas elites econômicas, sociais e políticas. Temos que tomar medidas, e que sejam elas prioritárias, para que o poder público e o governo, representado em todas as instituições do Pacto Federativo, amenizem esta latente desigualdade. Poderíamos afirmar, que a exclusão social nas universidades, “onde em uma sala de 50 alunos somente um é negro”, é uma questão social, entretanto, sabemos que : “O pobre é excluído. Mas, o pobre negro é diferente. O negro tem um agravante para sua pobreza, que é a cor da pele.” É necessário fazer uma exposição estatística para explicitar melhor essa situação e responder o porquê da necessidade das cotas: _ A proporção de brancos com nível superior é cinco vezes maior que a de negros, pardos e índios (fonte IBGE, Censo/2000); _ Segundo o I Censo Étnico-Racial, realizado na USP, 2001, 76,90% dos estudantes de graduação se declararam brancos, enquanto que 12,80% amarelos, 7% pardos, 1,2% negros e 0,4% indígenas; _ 1,9% dos diplomas de curso superior são entregues a negros (IBGE, 2001); _ 98% dos jovens negros, entre 18 e 25 anos, não haviam ingressado na universidade, segundo IPEA, em pesquisa intitulada desigualdade racial no Brasil; evolução das condições de vida na década de 90. _ Há um diferencial permanente de 2,3 anos de estudo entre negros e brancos de várias gerações, com vantagens para os brancos, segundo IPEA, em pesquisa intitulada desigualdade racial no Brasil; evolução das condições de vida na década de 90. Essa tendência de desigualdade racial se reproduz em outros indicadores sociais tais como: incidência da pobreza, renda apropriada por brancos e negros, desemprego, participação no mercado de trabalho, condições materiais de bem-estar: habitação e consumo de bens duráveis, assim como outras variáveis educacionais, além da mencionada. Do conjunto desses dados e considerações, o que fica evidente é que as políticas públicas universais, apesar de contribuírem para a melhoria das condições econômicosociais gerais, e com o tal devem, necessariamente continuar, comoprovadamente, se mostraram insuficientes para a inclusão das populações negras no âmbito da cidadania plena. A sociedade brasileira é ainda possuidora de uma inegável dívida social para com essa populações. Dívida esta cujo resgate só poderá concretizar-se na medida em que tomarmos consciência da necessidade de políticas públicas especiais pautadas no objetivo de eliminar o paralelismo que caracteriza a imensa desigualdade a separar os brasileiros negros dos brasileiros brancos. Ao propor este projeto, a intenção é que ele seja uma mola propulsora da equalização social étnica, mas sabendo que ao longo dos anos se tornará obsoleta, visto ter alcançado seu objetivo maior: a satisfação das oportunidades em igual valor para negros, brancos e índios, afinal, somos, de fato, brasileiros e temos as mesmas cores verde e amarela. Ante a importância da propositura pedimos o apoio dos nobres pares para a sua aprovação.